Vídeos no TikTok viralizam mostrando rotinas de casadas menores; especialistas, IBGE e plataformas reclamam ação coordenada
O que está acontecendo
Vídeos com hashtags como #casadaaos14 e #casadaaos15 têm somado milhões de visualizações no TikTok, exibindo adolescentes que se apresentam como casadas e mostram tarefas domésticas, gravidez e referências a “marido”. O fenômeno provocou inquietação entre especialistas, autoridades e ativistas por expor rotinas de menores que, segundo a lei, não deveriam viver em uniões conjugais.
O conteúdo viraliza mesmo quando envolve crianças ou é associado a uniões ilegais, e em alguns casos as famílias aparecem apoiando ou os parceiros são mencionados – apontando riscos claros de vulnerabilidade e exploração.
Dados e exemplos
Levantamento do g1 identificou ao menos 213 vídeos com #casadaaos14, 582 com #casadaaos15 e 32 com #casadaos13. Um perfil com mais de 190 mil seguidores publicou um vídeo em 2023 intitulado “Montando a marmita do marido” que ultrapassou 2 milhões de visualizações.
Os dados oficiais mostram que, em 2022, 34 mil crianças e adolescentes entre 10 e 14 anos declaravam viver em união conjugal no Brasil — 77% eram meninas, segundo o Censo Demográfico do IBGE. Técnicos do instituto reconhecem possibilidade de superestimação, mas especialistas alertam que a presença do fenômeno não surpreende.
Legislação e implicações
No ordenamento brasileiro, casar antes dos 16 anos é proibido e considerado nulo, mesmo com consentimento dos pais. A união estável envolvendo menores de 16 anos não é juridicamente reconhecida por contrariar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que assegura proteção integral.
Organizações como Oxfam e institutos de pesquisa em direitos digitais destacam que uniões infantis estão frequentemente correlacionadas com pobreza, evasão escolar, gravidez precoce e violência. O casamento infantil é muitas vezes apresentado como “solução” para problemas sociais, quando na verdade representa violação de direitos, afirmou Viviana Santiago, da Oxfam.
Moderação nas plataformas e ECA Digital
O TikTok informou ter removido alguns perfis e conteúdos apontados pela reportagem por violarem suas Diretrizes da Comunidade, e destacou relatórios de transparência que mostram remoções proativas em alto percentual: 99,1% dos vídeos com violações gerais e 99,8% para conteúdos com potenciais riscos de abuso de crianças.
Em setembro, o presidente sancionou o chamado PL da Adultização — o ECA Digital — que determina obrigações para provedores, como vincular contas de menores a um responsável e remover conteúdos inadequados. Especialistas, porém, alertam que postagens que romantizam uniões menores podem ficar em uma zona cinzenta, porque não exibem conteúdo explícito e são interpretadas socialmente de maneiras diversas.
Mariana Zan, do Instituto Alana, diz que esse tipo de conteúdo tende a romantizar o casamento infantil, tornando aceitável algo que é, juridicamente, ilícito e, socialmente, violento. Raquel Saraiva, do IP.rec, aponta que jovens buscam validação e viralização — e as redes, por falhas na moderação, replicam narrativas que podem normalizar a situação.
Análise e reflexão
Há uma tensão evidente entre o direito à expressão e a necessidade de proteção. Muitos vídeos são formatados como “lifestyle”: fáceis de produzir, com alto apelo midiático e grande potencial de engajamento. Isso explica por que tanto perfis de menores reais quanto de pessoas fora da faixa etária usam hashtags para ganhar visibilidade.
Proteção de crianças exige ações conjuntas: aprimorar moderação automatizada, educar famílias e comunidades sobre riscos e garantir políticas públicas que reduzam vulnerabilidade econômica e escolar. Plataformas precisam ir além da remoção reativa quando um padrão de exposição de menores sugere risco sistemático.
Do ponto de vista jurídico, registros e estatísticas reforçam a urgência de políticas preventivas. Do ponto de vista pastoral, vale lembrar a prioridade que a sociedade cristã historicamente dá à proteção da infância: em Lucas 18:16, Jesus diz para deixar vir a mim as crianças, o que sublinha a responsabilidade coletiva de cuidá‑las e protegê‑las.
Convertendo preocupação em ação prática, autoridades, igrejas, escolas e provedores de tecnologia podem articular iniciativas de prevenção e acolhimento: identificar casos, oferecer proteção social e educacional, e aplicar a lei quando necessário.
Em resumo, conteúdos que mostram meninas em rotinas de casadas mobilizam hoje debate público sobre legalidade, proteção infantil e responsabilidade das redes. É preciso ação coordenada para que a exposição digital não se torne normalização social de violações de direitos.

